Agora, tudo que gira em torno da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) aponta para uma caixa negra num buraco negro. A caixa negra é o próprio quartel-general da Agência, em Fort Meade, Maryland. O buraco negro é uma área que inclui os subúrbios do condado de Fairfax, na Virginia, próximo da CIA, mas, principalmente, o cruzamento da Baltimore Parkway e da estrada Maryland Route 32.
Ali se encontra um conjunto de prédios comerciais, a menos de dois quilômetros de distância da Agência Nacional de Segurança, área da qual Michael Hayden, ex-diretor da Agência (1999-2005) disse a Tim Shorrock, da revista Salon que “é a maior concentração de ciberpoder do planeta”. Hayden chamou-a de “Blackwater Digital”.[2]
O blog Pro-Publica apresenta lista decente de cinco perguntas chaves ainda não respondidas sobre o buraco negro.[3] Mas no que tenha a ver com como é possível que um especialista em TI, de 29 anos, com pouca escolarização formal, tenha tido acesso a quantidade extraordinária de segredos
ultrassensíveis do complexo de segurança-inteligência nacional dos EUA, a resposta é simples: aconteceu como efeito direto da orgia de privatização da espionagem – sobre a qual muitos falam, sempre mediante eufemismos do tipo “responsabilidade do fornecedor”. Verdade é que toda a operação de praticamente todo o maquinário (hardware) e de todos os programas (software) com os quais opera a gigantesca rede de 16 agências de segurança dos EUA foi privatizada.
Investigação feita pelo Washington Post descobriu que as agências norte-americanas de segurança interna, de contraterrorismo e de espionagem negociam com mais de 1.900 empresas privadas.[4] Consequência óbvia desse tsunami de fornecedores privados – hordas de proletários high-tech “do conhecimento” em cubículos-tocas – é o acesso indiscriminado a peças ultrassensíveis do aparato de segurança. Um administrador de sistemas como Snowden tem acesso a praticamente tudo.
A “porta giratória” nem remotamente basta para explicar todo o problema. Snowden foi um dos 25 mil empregados da empresa Booz Allen Hamilton (“Somos visionários”), nos últimos três meses.[5] Mais de 70% desses empregados, segundo a empresa, têm passe livre para questões de segurança, fornecido pelo governo; 49% têm acesso aos ‘top secrets’ (como no caso de Snowden) e acesso ainda superior. O ex-diretor da Inteligência Nacional Mike McConnell é um dos atuais vice-presidentes da Booz Allen. O novo diretor da inteligência nacional, general aposentado, de ar sinistro, James Clapper, foi executivo da mesma Booz Allen.
Pelo menos, a opinião pública nos EUA – e em todo o mundo – pode agora começar a entender como acontece que uma menina pashtun, no Waziristão, seja assassinada num “ataque predefinido”. Tudo é efeito dos metadados obtidos pela Agência de Segurança Nacional privatizada dos EUA, multiplicados num esquema Matrix, que leva a uma “assinatura”, que é sinônimo de “ataque predefinido”. A menina pashtun, “terrorista” naturalmente, pode vir a metamorfosear-se em perigosíssima abraçadora de árvores ou manifestante do tipo que ocupa ruas e parques.
É tudo culpa da China
Como sempre acontece, no instante em que Snowden revelou a própria identidade, a empresa-imprensa nos EUA passou a atirar diretamente na cabeça do mensageiro, sem dar atenção à mensagem. Esse ‘jornalismo’ foi, da mais reles tentativa de assassinato de reputação,[6] ao ex-agente da CIA que diz que muitos suspeitam que Snowden seja agente de possível golpe da espionagem chinesa.[7]
Também muito se discutiu o movimento à John Le Carre, com Snowden abandonando a boa vida no Havaí e voando para Hong Kong dia 20 de maio, porque “têm profundo envolvimento com a liberdade de expressão e o direito à divergência política”. O blogueiro Wen Yunchao, que trabalha em Hong Kong, escreveu, para a posteridade, que Snowden teria “saído da toca do tigre e entrado no buraco do lobo”. Seja como for, o visto de entrada carimbado no passaporte de Snowden no aeroporto Chek Lap Kok vale por 90 dias – tempo mais do que suficiente para pensar sobre o passo seguinte.
Desde 1996, antes de os britânicos devolverem a cidade à China, há um tratado de extradição vigente entre o tigre e o lobo.[8] O Departamento de Justiça dos EUA já analisa as opções disponíveis. É importante lembrar que o sistema judicial de Hong Kong é independente da China – conforme a concepção formalizada por Deng Xiaoping, de “um país, dois sistemas”. Assim como Washington pode tentar a extradição de Snowden, ele pode, por sua vez, pedir asilo político. Nos dois casos, poderá permanecer por meses, talvez anos, em Hong Kong.
O governo de Hong Kong não pode extraditar ninguém que se declare perseguido em seu país de origem. E, muito importante: o artigo 6º do Tratado determina que “nenhum fugitivo será entregue, se a ofensa de que a pessoa é acusada ou pela qual foi condenada é ofensa de caráter político.” Outra cláusula determina que nenhum fugitivo será entregue, se isso tiver consequências sobre “a defesa, as relações internacionais ou interesse público ou política pública essencial para – adivinhem! – a República Popular da China.”
Assim sendo, é possível que aí esteja um caso em que Hong Kong e Pequim terão de chegar a algum acordo. E mesmo que decidam extraditar Snowden, ainda assim ele poderá argumentar, em sua defesa, no tribunal, que se tratou de “crime político”. Em resumo – é possível que o caso se arraste por anos a fio. E é muito cedo para saber como Pequim agirá, para extrair da história o máximo de proveito. Situação de “ganha-ganha”, do ponto de vista chinês, seria equilibrar seu compromisso com a absoluta não interferência em assuntos domésticos de outros países, com o desejo chinês de sacudir o bote das frágeis relações bilaterais, sempre considerando o movimento de ‘anti-pivoteamento’ que o governo dos EUA ofereça em troca.
O mais consumado Panopticon
A direita furiosa de sempre, nos EUA, como era de esperar, desconsiderou o gato de que Snowden não vê os analistas de inteligência – nem, sequer, o próprio governo dos EUA, per se – como gente “inerentemente do mal”.[9] Mas chama a atenção para o fato de que todos eles trabalham sob uma falsa premissa: “se um programa de vigilância produz informação valiosa, o valor da informação legitimaria o programa. Num só passo, demos jeito de justificar a operação do Panopticom”.
Ah, sim, que ninguém se engane! Snowden leu atentamente seu Michel Foucault (também falou de sua repugnância ante “as capacidades desse tipo de arquitetura da opressão”).
O trabalho de Foucault, que desconstruiu a arquitetura do Panopticon, já é clássico.[10] O Panopticon foi o sistema de vigilância levado ao ponto máximo, projetado pelo filósofo do utilitarismo, Jeremy Bentham, no século 18. O Panopticon – uma torre cercada de celas, exemplo pré-Orwell de “arquitetura da opressão” – foi concebido originalmente, não para vigiar uma prisão, mas para vigiar uma fábrica cheia de camponeses sem terra em situação de trabalho forçado.
Oh, mas esses foram os passados dias dos protocapitalistas rudimentares. Bem-vindos ao futuro (de privatização selvagem)! Ali, os senhores do buraco negro da Agência de Segurança Nacional, a “Blackwater Digital”, tudo comandam, desse seu mais consumado Panopticon de última geração.
Discussão no Fórum Anti-NOM
Fontes:
Asian Times: Digital Blackwater rules
Tradução: Vila Vudu
Guardian: NSA whistleblower Edward Snowden: 'I don't want to live in a society that does these sort of things' – video
[1] Vídeo e entrevista traduzida
[2] Digital Blackwater: Meet the Contractors Who Analyze Your Personal Data, Alternet, June 10, 2013
[3] Top Secret America, Washington Post, June, 2010
[4] Digital Blackwater: Meet the Contractors Who Analyze Your Personal Data, Alternet, June 10, 2013.
[5] http://www.boozallen.com/
[6] http://www.politico.com/story/2013/06/10-things-to-know-about-edward-snowden-92491.html?hp=r2
[7] http://www.breitbart.com/InstaBlog/2013/06/10/Former-CIA-Officer-Intel-Considering-NSA-Whistleblower-Potential-Chinese-Espionage
[8] https://bulk.resource.org/gpo.gov/documents/105/td003.pdf
[9] http://www.washingtonpost.com/world/national-security/code-name-verax-snowden-in-exchanges-with-post-reporter-made-clear-he-knew-risks/2013/06/09/c9a25b54-d14c-11e2-9f1a-1a7cdee20287_story_1.html
[10] FOUCAULT, M. [1975] Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987 (em PDF em ftp://ftp.unilins.edu.br/leonides/Aulas/Ci_ncia%20Pol_tica%20-%20I/Foucault%20-%20Vigiar%20e%20Punir.pdf ; alguns excertos úteis em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Pan%C3%B3ptico.htm.
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